Desabafo de um ano de consciência pesada...

Hoje faz um ano. Que perdi o chão por debaixo dos meus pés. Num telefonema doloroso. De voz trémula, foi a minha mãe quem me deu a notícia.

Passei o dia a ponderar se deveria escrever sobre isto. Passei o ano, na verdade.

Chegou talvez a hora de desabafar um pouco. Não sei, neste momento, quanto tenho a dizer ou quanto irei efectivamente escrever. Nem tão pouco sei se isto acabará publicado ou simplesmente esquecido num rascunho inacabado.

No dia 12 de Dezembro de 2012 perdi o meu avô paterno.

As pessoas morrem. Todos os dias. Tantas. É o ciclo natural da vida. E ele partiu com uma vida cheia de alegrias, conquistas e frutos. Ninguém poderá alguma vez desejar uma vida melhor do que a dele. E mais do que qualquer um, ele mesmo afirmava-o orgulhosamente.

O meu avô Maximino foi o homem mais íntegro, mais respeitado, mais responsável, mais tudo... que eu conheci. Será sempre o melhor exemplo que terei para a minha vida.

Cresci ao pé dele. Via-o todos os dias. Falava com ele todos os dias. E sempre ele tinha uma nova história para me contar. Como eu desejava tê-las escrito num papel. Quem me dera ter uma memória capaz de recordar com detalhe todas as lições que ele me passou. E que memória tinha ele! Lembrava-se de tudo o que viveu, das pessoas que conheceu, das dificuldades por que passou, dos obstáculos que venceu.

Toda a gente sabe quem foi o Senhor Vint'oito. Todos o conheciam. Todos o admiravam e respeitavam. Toda a gente lhe levantava a mão em cumprimento na rua, por onde quer que ele passasse. Em criança, nunca deixava de ficar admirado por mais um "estranho" lhe levantar a mão, mesmo naquela rua por onde eu nunca tinha passado. O meu avô era, para mim, a pessoa mais popular da região.

O meu avô foi o melhor avô do mundo. E não foi apenas porque me deu mimos. Porque os deu de facto. Os sugos que comprei com as moedas de cinquenta escudos que ele me dava. Os lanches no café. Os gelados. Os passeios de carro. As boleias quando mais ninguém tinha tempo ou paciência para me levar onde queria ir. Mas também as conversas sérias. As lições de vida. Os exemplos. A exigência por uma postura digna. A aprovação e valorização do meu trabalho, do meu esforço. O orgulho em mim.

Mudei-me para a Dinamarca em Outubro de 2010. Contei-lhe que ia construir com LEGO. Que ia fazer brinquedos. Que ia ser um Designer. Que ia trabalhar no que eu mais gostava. Que ia realizar um sonho. Ele não conseguia compreender exactamente o que tudo aquilo significava. Mas para ele importava apenas que eu estivesse feliz. E foi isso que ele fez questão de me perguntar antes e mais do que tudo. "Então eu também estou feliz!", respondeu-me.

Meio ano depois, quando estava de visita em Portugal para festejar o meu 22.º aniversário, reuni toda a família em minha casa para soprar as velas e comer uma fatia de bolo. Como era hábito. Na despedida daquela noite, junto à porta, ele apertou-me os braços nas suas mãos firmes e fortes e na voz mais segura que conseguiu, tentando a todo o custo não soltar as lágrimas que lhe surgiam no canto do olho, disse-me: "Eu só queria que terminasses o teu curso... Eu só queria... Eu só queria que estivesses aqui a estudar... Eu só queria que estivesses aqui..."

O meu coração desfez-se em lágrimas, dentro do peito. Os meus olhos também húmidos, sorriram o mais que puderam, quando lhe disse que estava feliz, que não precisava voltar para a faculdade para tirar o mestrado. Tinha a sorte de estar a trabalhar no que mais queria. E ele sabia disso. E sei o quanto lhe custou fraquejar e ceder à emoção e saudade que sentia dos tempos em que me teve ali ao pé de si. Ele queria o melhor para mim e não admitia, nem a si mesmo, o egoísmo de desejar algo que me tirasse aquilo que eu mais queria para mim naquele momento.

Vi-o mais duas vezes depois depois dessa viagem. No Verão, quando estive em Portugal para visitar o evento da Comunidade de fãs de LEGO de que faço parte, tive a oportunidade de o ver no seu aniversário, no entanto deixei-a passar. Estava em Portugal enquanto LEGO Designer, numa viagem de trabalho e por isso, juntamente com o facto de naquele momento ter desejado passar mais tempo com os meus "amigos do LEGO", pensei que podia faltar ao aniversário dele. Tentei convencer-me que era a minha obrigação estar lá, no evento em Paredes de Coura, mas no fundo sabia que podia ter escapado por umas horas para voltar a Vilela e lhe dar um abraço. Mesmo que tivesse de fazer mais de 100km.

Já no ano anterior tinha faltado ao seu aniversário porque estava num outro evento da mesma comunidade, também em Paredes de Coura. Toda a família reunida, menos eu. Mas eu via-o todos os outros dias, por isso tentei fazer-me crer que ele não sentiria a minha falta. Dava-lhe o abraço depois. Se arrependimento matasse...

Voltei ainda a Portugal uma outra vez nesse Verão, para duas semanas de férias. Depois, em Outubro, voltei para mais uma semana de correria, ver amigos, família, conhecidos. Jantares, idas ao cinema, saídas à noite... Numa semana apenas, não deu para passar muito tempo com ninguém. Tive de repartir as horas. Como sempre que regresso. Mas naquela semana gravei na minha pele o número 28. A prova do orgulho e amor que sinto por ele e pela família que ele me deu. No entanto não lha mostrei nessa altura. Escondi-a. Sabia que ele não aprovava a minha decisão de ter feito uma primeira tatuagem. Por isso assumi que uma segunda só seria maior razão de desagrado. Ainda que essa fosse uma homenagem a ele mesmo. "Tenho tempo... Mostrou-lhe noutra altura...", pensei.

A "outra altura" chegaria pouco mais de dois meses depois, quando estaria de regresso para o Natal. Mas ela nunca chegou realmente. Nunca mais o vi. Vivo, pelo menos.

Numa segunda-feira, dia 12 de Dezembro de 2011, tinha começado o dia mal disposto. Na noite anterior, ao regressar a Vejle de um dia bem passado em Aarhus, deixei um saco no comboio, com coisas bastante importantes. Contactei os serviços do comboio e consegui assegurar que o saco tinha sido recuperado e seria entregue nos perdidos e achados em Copenhaga. Mas teria de lá ir recuperá-lo. E as viagens até Copenhaga são caras. E com o stress que tinha vivido naquela noite sem ter a certeza se o meu saco seria recuperado ou se alguém mal intencionado pegaria nele, acabei por nem dormir direito. Depois de uma manhã curta de trabalho, voltei para Vejle e apanhei um comboio à hora de almoço em direcção à capital. Poucos minutos depois recebi um telefonema da minha mãe. Estava a ouvir música no telemóvel, como de costume. Olhei para a palavra "mãe" no visor, a música tinha parado, dando lugar ao toque de chamada. Tinha acabado de ouvir "Time flies but you're the pilot...", parte da letra de "This is Love", dos The Script. E logo depois ouvi a minha mãe, a chorar do outro lado do telefone. Não demorei muito a perceber o que tinha acontecido.

Estava num comboio cheio de gente. Literalmente rodeado de pessoas. Sentado num banco com mesa e  bancos voltados de frente para mim. Portanto, tinha duas pessoas sentadas exactamente do lado oposto e uma ao meu lado. Chorei o resto da viagem, por duas horas. Como nunca tinha chorado na minha vida. Só queria desaparecer. Queria ver o meu avô. Queria sentir o abraço dele. Queria acordar. Queria que fosse um pesadelo. O pior de sempre, mas um pesadelo. Mas só as minhas lágrimas me fizeram companhia naquela viagem. Ninguém ousou perguntar se estava bem ou se precisava de alguma coisa. Estava claramente transtornado. Não fiz questão de o esconder. Não estava sequer preocupado com isso, para dizer a verdade. Mas estava sozinho, apesar de rodeado por tanta gente.

Só consegui voo para Portugal no dia seguinte. Com duas escalas. Sendo a segunda em Lisboa. O segundo voo atrasou-se e acabei por não conseguir apanhar o avião de Lisboa para o Porto que me daria a oportunidade de chegar a tempo do funeral. Eu supliquei que me colocassem no avião, mas as portas tinham-se fechado 5 minutos antes. Eu corri o mais que pude. Mas tudo parecia querer manter-me longe do meu avô.

Não cheguei a tempo do funeral. Afinal não temos "sempre tempo", como pensamos...

Durante meses questionei-me se tinha feito a escolha certa em mudar-me para a Dinamarca. Vim para cá e deixei todos os que mais amo. Deixei de fazer parte das vidas deles. E eles da minha. Pelo menos da forma como era antes. E todo este tempo tenho carregado a culpa e o arrependimento por ter faltado aos dois últimos aniversários dele. Por não lhe ter mostrado a tatuagem que fiz por ele. Por não lhe ter dito com palavras o quanto o amo e o orgulho que tenho em ser Vint'oito.

Hoje foi um dia difícil. Esperei até ao fim para finalmente por em palavras o que me vem pesando no pensamento ao longo deste ano. O primeiro.

Agora que está escrito, agora que o desabafei, não sinto alivio. Não estou mais leve. Mas sei agora que tu que lês o meu blog, que segues o que vou aqui escrevendo, ainda que esporadicamente, ou que cá vieste parar por mero acaso, sabes o quanto o meu avô foi importante na minha vida e o grande homem que foi e sempre será.

Não sou uma pessoa de fé. Perdi-a muito cedo. Por isso não tenho por hábito, de todo, acreditar que as coisas acontecem "porque tiveram de acontecer", ou "porque há um propósito maior", "uma lição a tirar"... Porém, com a morte do meu avô, se algo, aprendi que realmente não temos tempo para tudo. Que ele voa mesmo. Mas também que somos nós que decidimos como o gastamos, para que direcção vamos...


Até sempre, avô.

Comentários

Alexandra Caldas disse…
Me comoveste, muito Lindo tudo o que escreveste, somente quem sofre uma grande perda é que começa a dar valor a determinadas "pequenas" coisas.Felicidades para ti e nunca abandones os teus sonhos.
Anónimo disse…
És um grande ser humano. Não te conheço, mas quem escreve assim com essa honestidade só o pode ser. Fiquei emocionado ao ler este relato
Anónimo disse…
Olá, ñ sei se esta página ainda está activa, mas vim aki parar e acho k conheci o teu avô.